Contratos de concessão de autoestradas e mobilidade sustentável

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No domínio da mobilidade, é uma das regras mais retrógradas que vigora entre nós: em todos os contratos de concessão de autoestradas (com ou sem PPP) existe uma cláusula que impõe à concessionária o aumento do número de vias de trânsito em determinado troço da autoestrada (= lanço entre dois nós), sempre que o volume de tráfego automóvel nesse troço ultrapassar determinado limite:
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            - Nas autoestradas com quatro vias de trânsito (duas em cada sentido), o troço tem de ser alargado para seis vias (três em cada sentido) quando o tráfego médio diário anual nesse troço atingir 35 mil veículos (em algumas concessões o limite é de 38 mil veículos);
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            - Nas autoestradas que já têm seis vias de trânsito (três em cada sentido), o troço tem de ser alargado para oito vias (quatro em cada sentido) quando o tráfego médio diário atingir 60 mil veículos.
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Não se exige sequer que o volume de tráfego se mantenha igual ou superior àquele limite durante um número mínimo de anos:
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[O que permitiria evitar obras supérfluas como, por exemplo, o recente alargamento da A5 entre Estoril e Alcabideche, onde, no pós-alargamento, o tráfego automóvel se mantém bem abaixo do limite que determinou o aumento do número de vias…]
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Pelo contrário, quando o limite é atingido, o projeto de obra deverá ser rapidamente iniciado, incluindo a realização das expropriações necessárias (e respetivos realojamentos), já que o troço alargado tem de estar em serviço no máximo até dois anos depois de o limite de tráfego ter sido atingido (nalguns contratos, o prazo é de três anos).
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No contrato de concessão da Brisa, chega-se ao ponto de se prever a construção de uma nova autoestrada quando, por razões de ordem técnica ou económica, for “desaconselhável” fazer a obra de alargamento (pense-se, por exemplo, numa zona muito urbanizada, onde, para se fazer o alargamento, fosse necessário proceder à demolição de prédios de habitação). Ou seja, neste caso, em vez de se introduzirem duas novas vias na autoestrada existente, constrói-se uma nova autoestrada - portanto, com quatro novas vias.
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Por vezes diz-se, erradamente, que as obras de alargamento de autoestradas não têm qualquer custo para o Estado. Sem esquecer o caso das autoestradas concessionadas à Estradas de Portugal (em que é o erário público que suporta integralmente o custo do alargamento), nos contratos de concessão existentes são quatro os modelos previstos:
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1) Num primeiro grupo de casos, os contratos determinam expressamente que é o Estado que suporta a totalidade dos encargos do alargamento da autoestrada. É o que sucede, designadamente, na concessão Autoestradas da Grande Lisboa, na concessão Autoestradas do Grande Porto, na concessão Autoestradas da Costa de Prata, na concessão Autoestradas do Norte, na concessão Autoestradas da Beira Alta, na concessão Autoestradas do Norte Litoral e em casos específicos de outras concessões, como por exemplo o alargamento da A8 entre a CRIL e Loures na concessão Autoestradas do Atlântico, ou, no caso da concessão Brisa, os alargamentos da A1 entre Carvalhos e Santo Ovídio, da A2 entre Almada e o Fogueteiro, da A3 entre Águas Santas e Maia, da A4 entre Águas Santas e Ermesinde, da CREL (todos estes casos de zonas densamente povoadas, onde a probabilidade de alargamento é muito maior e os custos de obra são muito mais elevados), da A6 entre Elvas e Caia e da A14 entre Figueira da Foz e Santa Eulália.
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2) Em três outras concessões (concessão Autoestrada do Algarve, concessão Autoestradas da Beira Interior e concessão Autoestradas do Interior Norte), estabelece-se um regime insólito: o alargamento da autoestrada, feito pela concessionária, implica a prévia negociação com o Estado de novas bandas de tráfego e de novas tarifas, feita de modo a que a concessionária “e os seus acionistas” não fiquem, após o alargamento, “nem em melhor nem em pior situação face ao investimento que tenham de efetuar em alargamentos”. Se nessa negociação a concessionária não aceitar um acordo com o Estado, é o Estado que suporta a totalidade do custo da obra de alargamento.
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3) Num terceiro modelo (concessão Autoestradas do Atlântico, com a exceção já referida), o Estado paga a totalidade do valor das indemnizações pelas expropriações de terrenos necessários à obra de alargamento e os custos dos respetivos processos, cuja condução lhe incumbe, bem como o custo de servidões e de quaisquer outros ónus ou encargos que resultem da obra. A concessionária custeia a obra de construção propriamente dita.
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4) Num quarto e último grupo de casos (concessão Autoestradas do Litoral, concessão Autoestrada do Marão, concessão Autoestradas do Douro Litoral e, com as exceções atrás referidas, concessão Brisa), estabelece-se que a obra de alargamento é custeada pela concessionária, sem comparticipação financeira do Estado.
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No entanto, neste último grupo de casos (e no anterior, em relação à parte da obra que se diz não ser comparticipada pelo Estado), só precipitadamente se pode concluir que o custo é integralmente suportado pela concessionária da autoestrada: a esse custo corresponde um valor económico, que é uma contrapartida contratual e constitui, em qualquer caso, um “crédito” do Estado, de valor correspondente ao custo da obra, que poderia ser aplicado, por exemplo, em investimentos em modos mais sustentáveis de deslocação.
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Alguns dos contratos de concessão foram recentemente renegociados, mas em nenhum deles esta regra foi eliminada ou alterada. Ela pura e simplesmente não é posta em causa: constitui um dado adquirido.
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A conceção de que a um crescimento do tráfego automóvel se tem de responder com um aumento da capacidade de escoamento do tráfego, que é a filosofia inerente a este sistema, assentava bem nas políticas de mobilidade de há várias décadas, mas atualmente é bastante difícil compreender, isto num país onde se fala cada vez mais em “sustentabilidade” e onde se justifica constantemente a falta de investimento na ferrovia com a "falta de dinheiro".
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O caso da autoestrada A5 – e isto só para citar um exemplo – é paradigmático: esta autoestrada foi recentemente alargada nos troços entre Carcavelos e Alcabideche, enquanto ali ao lado a importante linha ferroviária de Cascais está há muitos anos carecida de urgente investimento e à beira da rotura.
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[E é possível que estejamos perto de um novo alargamento para oito vias dos troços de Miraflores até Carcavelos da mesma autoestrada (se viável), que registam há muito um tráfego muito superior a 60 mil veículos: no caso da A5, a regra da imposição do alargamento ficou contratualmente suspensa enquanto a CRIL não estivesse concluída, o que, como se sabe, já aconteceu.]
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Num documento recente da Brisa, pode ler-se que esta concessionária gastou perto de mil milhões de euros em obras de alargamento de autoestradas. E se esse valor – e o de outros alargamentos – tivesse sido investido em obras de melhoramento ou de construção na ferrovia (sabendo-se que a maior parte do valor investido em ferrovia é financiada com fundos comunitários)? E se, nos contratos celebrados com as concessionárias, em vez de se impor o alargamento da autoestrada, se determinasse que o valor correspondente ao custo desse alargamento deveria ser aplicado em projetos de investimento na ferrovia? Não faria essa regra mais sentido num país que diz querer apostar na mobilidade sustentável e que, por outro lado, alega não ter dinheiro para investir na ferrovia?...
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[Nota final: esta não é uma questão passada: a retrógrada regra está incluída em contratos celebrados para vigorar durante décadas. As obras de alargamento de autoestradas continuam a fazer-se, por imposição contratual, e sempre em zonas onde elas são bastante caras (ver, a este propósito, o artigo seguinte).]
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